Como a volta do heroin chic demonstra um retrocesso no combate à padronização


Por Livia Sant'Anna e Yasmin Martins



        Na contramão dos movimentos que pregam a auto aceitação, o Heroin Chic é uma tendência de moda na qual são exibidas modelos extremamente magras, com aspecto mal nutrido, ossos marcando a pele, olheiras profundas, cabelo bagunçado e uma maquiagem leve (ou sem maquiagem). Popularizado entre os anos 90 e 2000, o nome do estilo se deu pela glamourização das drogas e da estética “ressaca pós festa” mostrada nas capas de revista da época. A heroína havia se tornado uma droga considerada “cool”. 


Décadas após seu estrelato, a tendência volta a aparecer não só no mundo da moda, mas também em produções audiovisuais e nas redes sociais. Em relação ao vestuário, minissaias e calças de cintura baixa voltaram às passarelas em modelos super magras reforçando, mais uma vez, a “ditadura da magreza''. Outros fatores a serem ressaltados são a produção de séries televisivas, como Euphoria e Skins - apresentando uma certa romantização desse estilo de vida - e também plataformas como o Tik Tok e o Instagram, que ajudam a repercutir a estética mundialmente.


Segundo a psicóloga Natália Cecchetti, aconteceu um significativo aumento no número de pessoas afetadas pelos transtornos alimentares nos últimos anos, estimulado pela procura por um “corpo ideal”  disseminado na mídia. De acordo com a profissional, a busca desse padrão gera um grande sofrimento: "Têm surgido vários transtornos, de vários tipos. A anorexia na adolescência, bulimia e distorção de imagem são os que mais aparecem”. Além disso, a glamourização de drogas para emagrecimento, legais ou ilegais, é extremamente perigosa: “Algumas drogas ilícitas ou lícitas conseguem fazer com que você não se alimente. Então, ela facilita o emagrecimento, mas causa vários outros problemas em longo prazo. Isso não é só para as modelos. Está havendo um culto ao uso de drogas ilícitas ou lícitas muito grande para lidar com os seus problemas”. 

O mundo tecnológico afeta drasticamente a visão das pessoas, principalmente mais jovens, sobre os seus corpos, visto que o sentimento de comparação torna-se muito grande quando se está exposto a corpos considerados perfeitos ou ideais frequentemente. Dessa forma, redes sociais viram objetos de validação para os seus usuários,  passando a ideia de que aqueles  que  não tiverem o perfil imposto nessas mídias não serão aceitos  pela sociedade. Por isso, transtornos alimentares, como bulimia, anorexia e compulsão alimentar, vêm crescendo significativamente no mundo inteiro. De acordo com a nutricionista Ledimar Martins, não é tão fácil diagnosticar esses casos e, por isso, deve-se  prestar atenção: “É preciso estar atento aos comportamentos que parecem normais e saudáveis, pois o que causa transtorno alimentar não é fácil de detectar. Alguns sinais de um possível transtorno alimentar são: a flutuação no peso, a prática exagerada de exercícios físicos, a preocupação excessiva com a aparência, as alterações no humor, o afastamento social, a indução de vômitos e o abuso no uso de laxantes.”



O olhar de quem sofre com a pressão estética



Uma estudante que se define como plus-size e prefere não se identificar contou um pouco sobre a forma pela qual  os padrões são impostos pela sociedade: “Sempre tive o sentimento que as pessoas que têm um corpo considerado ideal são mais respeitadas do que pessoas acima do peso ou consideradas gordas. Sinto que em muitas discussões, em grupos de amigos, eu não sou tão respeitada quanto minhas amigas que são magrinhas, que têm um corpo perfeito”. A adolescente ressalta, ainda, que passou por situações de exclusão dentro de círculos da escola: “Sinto que essas minhas amigas sempre foram muito mais populares, as pessoas sempre falaram mais com elas do que comigo. Eu tinha vergonha de lanchar na escola porque sentia que as pessoas estavam me encarando, [vergonha] de usar determinados tipos de calça jeans por achar que tinha uma gordura fora do lugar. Em  todas as fotos da turma, eu sempre ficava atrás de todo mundo para não aparecer o meu corpo”.


Os grupos que lucram com as inseguranças tornam-se os “ditadores” dessas tendências. Empresas de beleza e de vestuário se beneficiam com a padronização da sociedade, já que se todos tiverem um corpo com medidas parecidas e usarem as mesmas tendências, o custo para a fabricação de peças de roupa e utensílios de beleza será menor  por conta da procura similar entre os consumidores. Sobre o assunto, Natália destaca: “A moda tem muita psicologia e muita coisa embutida nela para  conseguir vender mais. Só  que quando ocorre esse padrão, as pessoas ficam tentando se encaixar nessa roupa, porque não conseguem achar roupa. Então  começa o sofrimento, e com esse sofrimento as pessoas vão começando a criar mais sintomas.”


Como exemplo, é possível citar a polêmica da marca Victoria’s Secret ao rotular a modelo Barbara Palvin como plus-size. A ação ressalta a falta de representatividade de pessoas  consideradas fora do padrão imposto pela publicidade  em grandes marcas. . "A maioria das personagens gordas em filmes e séries nunca tem  uma personalidade própria ou algo no personagem delas que é extremamente relevante. Sempre é algo relacionado ao corpo ou elas são sempre inferiorizadas;  quase nunca têm uma constância. São as coadjuvantes, as personagens engraçadas, nunca é uma personagem principal. São  as que menos  obtêm conquistas, tanto pessoais, profissionais ou amorosas”, ressalta a jovem entrevistada.



E a mídia?


No dia 2 de novembro de 2022, um artigo do New York Post ganhou bastante repercussão por  tratar a volta do Heroin Chic como padrão de beleza. O post intitulado Bye-bye booty: Heroin chic is back (“tchau-tchau bumbum: heroin chic está de volta”) traz exemplos do mundo da moda e das celebridades de como esse estilo está voltando, seja pelos corpos mais magros ou pelas roupas muito marcantes nos anos 90. Modelos como Bella Hadid, Lila Moss e Kaia Gerber estão sendo vistas como o novo padrão de imagem perfeita - um corpo extremamente magro e sem muitas curvas - ganhando muita atenção da mídia e dos seus seguidores nas plataformas digitais. 


 Outro caso bastante repercutido no mundo digital e citado na matéria é o emagrecimento rápido de Kim Kardashian no MET gala deste ano. A socialite perdeu mais de sete  quilos em apenas  três semanas para poder caber em um vestido utilizado por Marilyn Monroe  em comemoração ao aniversário do  então presidente John F. Kennedy em 1962, o que lhe causou muitas críticas . Os internautas apontaram os riscos de Kim compartilhar o seu processo de “preparação” e dietas em entrevistas aos canais de tv, já que - por ter bastante influência no mundo do entretenimento - as suas falas possuem maior chance de incentivar jovens a realizarem atos extremos para conseguir emagrecer em pouco tempo . Além dos comentários da internet, famosas também se pronunciaram sobre o  episódio, como é o caso da atriz Lili Reinhart:  “Andar no tapete vermelho e dar uma entrevista dizendo o quão faminta você está, porque você não comeu carboidratos no último mês… Tudo isso para caber em um vestido? Tão errado. Errado em tantos níveis…” . 



Foto 2: Celebridades vistas como modelo desse padrão na mídia atual



A volta da padronização dos corpos representa um retrocesso dos movimentos “body positive” - luta pela aceitação do próprio corpo e características consideradas fora do padrão - que vinham ganhando força nos últimos anos. Críticas feitas pelo movimento incluem a falta de representatividade e diversidade de corpos pelas mídias e  a ligação do corpo com a saúde - o movimento combate a visão da sociedade de que determinados corpos são mais saudáveis que outros somente pelos seus formatos. Uma das principais apoiadoras da causa, a atriz Jameela Jamil se posicionou em relação a matéria do New York Post em suas redes sociais. “ Não há nada de ‘chique’ em um vício mortal em drogas que te faz tão magro por você estar morrendo lentamente”, afirmou.


Além disso, séries como Euphoria contribuem para a glamourização das drogas, já que a estética mostrada pela produção utiliza  maquiagens e filtros considerados aesthetic pelos jovens ao retratar situações complexas como o vício, problemas familiares e interpessoais. Na produção, a protagonista, Rue Bennett, utiliza o fentanil como forma de aliviar os seus sentimentos, sendo que um dos sintomas comuns associados ao seu uso é, justamente, a euforia. Assim como a personagem, muitas pessoas buscam meios de aliviar as suas dores e, às vezes, acabam recorrendo às drogas como método. Portanto, tem-se o risco de séries e filmes como essa influenciarem os seus espectadores a utilizar o que está sendo exposto, por isso a maneira que esses assuntos são abordados é tão importante e merece ser discutida entre os seus responsáveis.


Com isso, anos de luta contra esse sistema que não é favorável à diversidade são comprometidos pela volta de tendências como o heroin chic. E por consequência desse retorno, o debate sobre os riscos da busca por esses modelos inalcançáveis torna-se importante para contribuir com a auto aceitação e o amor próprio. “Quando você não consegue atingir esse padrão, quando você não consegue se encaixar na roupa começa um sofrimento, porque começa a busca por uma roupa que não existe, porque não é feita. Então é difícil ter uma padronização, porque o ser humano não consegue ter um padrão. Nós  não somos robôs”, refletiu Natália.